Terei tido um parto traumático?

Trauma de parto

1. Quais são os sintomas de um trauma de parto?

É comum pensar-se – e dizer-se – que o sofrimento é incompatível com a chegada de um filho, mas isso não é verdade. Muito menos quando no dia do parto houve a sensação de o corpo se ter separado da alma para poder sobreviver a uma situação de angústia e aflição tão grandes que a altura dada parecem não ter sido reais.

“Parecia que me estava a ver de fora enquanto tiravam o bebé de dentro de mim…”
“Quando vi o meu bebé não senti nada… Só pensava que aquilo não era real”
“Pensei que ia morrer. Despedi-me mentalmente do meu bebé e agora que estamos aqui parece que não me consigo ligar a ele”
“Desde que sou mãe tenho medo de adormecer, só de pensar que posso ter aqueles pesadelos horríveis outra vez”

Estes são alguns sinais de que a mulher atravessou um evento que a marcou profundamente e for a daquilo que se espera que aconteça num parto saudável. Falamos aqui de sintomas de trauma que se podem manifestar de diversas formas como:

  • estado de grande aflição ao sentir-se constante ou frequentemente no limite de algo muito perigoso quando pensa no parto (real ou percepcionado);
  • sensações físicas intensas ao lembrar o nome, o tom de voz, frases utilizadas pelas pessoas que atenderam o parto/internamento hospitalar;
  • flashbacks/imagens intrusivas em que revê/revive o momento traumático de forma inesperada, dando a sensação de que se está novamente sob ameaça;
  • hipervigilância em relação ao bebé, ao seu corpo e/ou ao seu ambiente, em busca de sinais de perigo a todo o momento;
  • acessos de raiva, zanga, vergonha ou medo repentinos e difíceis de controlar;
  • distúrbios de sono como, por exemplo, insónia (não relacionada com a toma de medicação ou despertares expectáveis do recém-nascido) e/ou pesadelos relacionados com o parto;
  • evitamento daquilo que relacione com o parto como, por exemplo, falar sobre o mesmo, ir ao hospital/instituição onde este aconteceu, seguir contas de redes sociais sobre o tema, estar em contacto com outras pessoas grávidas e, em casos mais delicados, evitar o próprio bebé;
  • apatia ou dormência emocional, a sensação de “estar à parte do mundo” em que a pessoa parece estar inerte enquanto as coisas estão a acontecer “lá for a”, não sendo capaz de sentir ou expressar emoções;
  • falta de esperança na vida e no futuro, com dificuldade em sentir alegria, entusiasmo, amor, felicidade.

2. O trauma está nos olhos de quem vê

Apesar de podermos enumerar um conjunto de sinais e sintomas de trauma, a complexidade da vivência do trauma transcende o quantificável. Em linhas gerais, isto significa que:

  • A forma como cada pessoa vive uma experiência de parto é única.
  • Não é possível hierarquizar e comparar a gravidade das experiências traumáticas.
  • O trauma não está diretamente associado a procedimentos técnicos e médicos.
  • Aspetos de ordem psicológica e emocional são inseparáveis da experiência como um todo.
  • Interações violentas e/ou humilhantes com cuidadores e profissionais de saúde no momento do parto têm o poder de gerar trauma.
  • Qualquer pessoa pode experienciar um parto traumático, independentemente do seu género, idade, etnia, formação, ou classe social.
  • Apenas a pessoa que viveu a experiência traumática pode classificá-la como tal, pois o trauma assenta na esfera do sentir.

Assim sendo, podemos definir trauma de parto como:

“Uma experiência decorrente de interações e/ou eventos diretamente relacionados ao parto que causaram emoções e reações angustiantes e avassaladoras, resultando em impactos negativos de curto e/ou longo prazo na saúde e no bem-estar da mulher.”

Isto significa que cabe exclusivamente à mulher falar de como sentiu o seu parto. Narrativas em que a mulher é descrita como exagerada ou demasiado sensível, não correspondem à verdade, já que ver-se confrontada com a dimensão da sua angústia, foi precisamente o que a marcou de uma forma tão dolorosa.

Ao falarmos do campo de experiência individual de cada mulher na forma como entende o seu parto, precisamos ter em conta que aquilo que representa uma experiência angustiante para uma pessoa, não tem de o representar para outra. É por este motivo que às experiências-limite no seu aspecto mais genérico, chamamos de evento potencialmente traumático, pois sabemos que a diferença entre este configurar ou não um trauma, está na forma como a mulher viveu esse acontecimento no mais íntimo de si.

Vamos a dois exemplos para dar forma a esta ideia:

Cenário A

Tiveste um parto medicalizado e instrumentalizado. Mesmo tendo desejado muito um parto natural sem intervenções, sentiste alívio e segurança porque a determinado momento, em decorrência de complicações que te foram explicadas, o teu foco passou rapidamente para a saúde do bebé, que precisou de cuidados extra ao nascer.

No final do parto sentiste-te grata por seres acompanhada por uma equipa experiente que te explicou a necessidade de alterar o plano A e que te assegurou que estavam juntos no objetivo de te ajudar a fazer nascer o teu bebé de forma saudável e amorosa, tendo-te sentido sempre cuidada e acarinhada durante toda a experiência, mesmo nos momentos de maior medo.

Cenário B

Tiveste o parto que tanto desejaste, vendo cumpridos os desejos que contemplaste no teu plano de parto. Tiveste uma experiência altamente marcante pela positiva, mas 2 horas após o nascimento, o teu bebé revelou dificuldades respiratórias e necessitou de internamento na neonatologia. Foi-te bem explicada pela equipa a necessidade de internamento do bebé, mas devido ao elevado fluxo de trabalho no hospital, não tiveste notícias dele ao longo de muitas horas durante as quais imaginaste cenários muito graves, incluindo a sua morte.

Na prática, o parto foi muito positivo e hoje, tu e o filho estão bem fisicamente. Mas, emocionalmente, por nada saberes do teu bebé durante várias horas, continuas a viver momentos de ansiedade extrema e medo de “amar demais” o teu filho porque sentes a ameaça de o poder perder de vez.

3. De sintomas de trauma a um diagnóstico de Perturbação de Stress Pós-Traumático

Do ponto de vista clínico, existem manifestações importantes que suportam um diagnóstico de trauma perinatal. Por se tratar de um campo de cariz psicológico/emocional e subjetivo, além da presença dos sintomas, um profissional qualificado tem de avaliar a sua intensidade, duração e impacto na vida da pessoa.

Estudos sugerem que um em cada três partos é experienciado como psicologicamente traumático, e que entre as famílias impactadas, cerca de 4% das mulheres e 1% dos seus parceiros virão a desenvolver aquilo a que chamamos de perturbação de stress pós-traumático (PSPT). Esta pode ser uma novidade para muitas pessoas, uma vez que a PSPT (reconhecida durante vários anos como diagnóstico de saúde mental exclusivo em veteranos de guerra a partir da década de 80) só foi estendida à área perinatal em 2014.

 

A distinção entre trauma e a PSPT é baseada em três vertentes de análise:

    1. É preciso que estejam presentes sintomas específicos correspondentes à perturbação (como os apresentados na secção 1 deste artigo);
    2. É preciso que estes sintomas estejam presentes há mais de um mês;
    3. Os sintomas têm de estar a impactar significativamente a vida da pessoa (por exemplo, o funcionamento parental).

O reconhecimento urgente e necessário da PSPT, veio a melhorar a qualidade de vida das pessoas cujo sofrimento, até então, permanecia silenciado nas suas memórias mais dolorosas e solitárias.

4. Como tratar?

Existe um corpo de investigação científica bastante robusto que comprova que a Terapia Cognitivo-Comportamental tem sucesso no tratamento de sintomas traumáticos e PSPT, incluindo abordagens mais modernas como a Terapia da Aceitação e Compromisso – uma corrente que seguimos na nossa prática clínica na The Lovable You.

É importante lembrar que o trauma perinatal tem tratamento e é possível restaurar a saúde mental após um parto traumático.

A forma como a terapia se vai desenrolar vai depender das particularidades de cada caso, mas estes são alguns dos objetivos e focos de trabalho que podem surgir:

  • Aumentar a percepção de segurança física e emocional
  • Reduzir comportamentos de evitamento e sintomas de dissociação
  • Reduzir a hipervigilância e a sobreativação emocional
  • Trabalhar memórias traumáticas
  • Desenvolver competências de regulação emocional e autocompaixão
  • Fomentar ações comprometidas com os valores pessoais
  • Possibilitar o crescimento pós-traumático
  • Entre outros

5. Por que é importante reconhecer e ter informação sobre trauma perinatal?

Porque a compreensão clara do que configura um parto traumático ajuda a mulher a reconhecer a sua situação como importante e merecedora de todo o amparo e cuidado.

Sem esta perspetiva que coloca a mulher no centro do cuidado que lhe é prestado, dificilmente ela partilhará aquilo que aconteceu consigo e que na maioria das vezes é tão invisível aos olhos do mundo.

“Sem ver aquilo que aconteceu conosco como importante e digno, porque haveríamos de partilhar a nossa angústia e pedir ajuda?
Deve haver tantas experiências muito piores…”

É nesta brecha de dúvida e comparação que o silêncio se instala porque num evento com pouca importância não há nada para falar, para ver, reparar ou integrar.

Construir a ponte para o outro lado da vida após o trauma perinatal, é o centro da ação na The Lovable You porque a memória dolorosa, e até devastadora, daquilo que te aconteceu, pode ser compartilhada, escutada e acolhida por pessoas que reconhecem a extensão do trauma. Sobretudo quando nos sabemos inseridas num contexto social que, agora que és ou voltaste a ser mãe, espera a tua felicidade incondicional quando, dentro de ti, podes estar a atravessar em silêncio os dias mais nebulosos da tua vida.

Estamos aqui para ti. Aliás, este espaço é teu.

Notas:

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787

Ayers, S., Horsch, A., Garthus-Niegel, S., Nieuwenhuijze, M., Bogaerts, A., Hartmann, K., Karlsdottir, S.I., Oosterman, M., Tecirli, G., Turner, J.D., & Lalor, J. (2024) Traumatic birth and childbirth-related post-traumatic stress disorder: International expert consensus recommendations for practice, policy, and research. Women Birth. 37(2),362-367. doi: 10.1016/j.wombi.2023.11.006

Bauer, A., Parsonage, M., Knapp M., Iemmi, V., Adelaja, B. (2014) The costs of perinatal mental health problems. London School of Economics and Political Science, London, UK.

Harris, R. (2021) Trauma-Focused ACT. A Practitioner’s guide to working with mind, body and emotion using Acceptance and Commitment Therapy. California: New Harbinger Publications

Leinweber, J., Fontein-Kuipers, Y., Thomson, G., Karlsdottir, S.I., Nilsson, C., Ekström-Bergström, A., Olza, I., Hadjigeorgiou, E., Stramrood, C. (2022) Developing a woman-centered, inclusive definition of traumatic childbirth experiences: A discussion paper. Birth, 49(4), 687-696. doi: 10.1111/birt.12634

Svanberg, E. (2015) Why birth trauma matters. London: Pinter & Martin.

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