Crescimento pessoal através da perda gestacional

A perda de um filho está entre as maiores de todas as provações que uma mãe e um pai possam alguma vez enfrentar. Popularmente é comum ouvir-se que “é contranatura um filho partir antes dos pais”, que “a ordem natural da vida, é os pais irem à frente dos filhos”. Muito particularmente a perda de um bebé, de uma criança ou adolescente, para além de inconcebível é um assunto tabu. Funciona como um segredo de que toda a gente conhece um caso, mas sobre o qual não se fala, remetendo o medo da perda para um lugar de dor tão transversal quanto incomunicável.

“Quando os pais morrem, perde-se o passado.
Quando os filhos morrem, perde-se o futuro”

Luby E. 1997

Crescimento pessoal através da perda gestacional

Ao atravessar o luto pela perda de um filho é inevitável que a seu tempo pensemos em como continuar a viver, a construir um presente, a planear um futuro e, também, em ser feliz, quando uma parte tão importante de nós partiu.

“Será que alguma vez conseguirei voltar a sorrir sem me lembrar que perdi a minha filha?”

“Se eu seguir em frente estarei a trair a memória do meu bebé?”

“Como é que eu posso honrar a vida deste bebé para que ele nunca seja esquecido?”

Estas e muitas outras perguntas surgem frequentemente na mente dos pais após a perda, como um exercício de exploração de possibilidades para dar continuidade às suas vidas, à suas famílias e até à memória do bebé que partiu.
Se eu seguir em frente estarei a trair a memória do meu bebé?
1. A vida e o luto após a perda

Por ser um processo extremamente pessoal, não existe uma forma certa de viver o luto. Sabemos que os primeiros meses após a perda são de grande intensidade e espera-se que diminua gradualmente até aos 12 meses. Segundo um estudo que data de 2023, para 59% dos pais que nele participaram, a dor da perda continuava muito presente ao fim dos dois primeiros anos de luto, enquanto que 41% dos pais, ao fim deste mesmo período de tempo, conseguiam identificar pontos que melhoraram nas suas vidas e que, de alguma forma, podem ter servido de amparo ao seu sofrimento.

 

2. Crescimento pós-traumático depois da perda

Após as ondas mais violentas da devastação causada pela perda de um filho, há famílias ou indivíduos para quem ao longo do tempo, algo começa a despontar como as primeiras flores da primavera. Um novo rumo, uma atualização daquilo em que acreditam, uma forma de honrar o bebé ou criança que partiu.

A este processo, em que são identificadas mudanças positivas a nível psicológico depois de enfrentar circunstâncias altamente desafiadoras (que podem coexistir com a existência de trauma), é dado o nome de crescimento pós-traumático.

Importa salientar que a nota positiva deste termo que nos remete para um certo nível de expansão, não minimiza nem apaga a dor do luto. Esta teoria demonstra-nos que, à sua maneira e ao seu ritmo, há pessoas que encontraram na perda uma forma de entrar em contacto mais profundo com a complexidade da sua própria existência e começaram a redescobrir-se em relação consigo mesmas e com o mundo; como uma grande tempestade metafórica que devastou as terras por onde passou, inundando, partindo, arrancando, mas que terminada a sua passagem, todos começam a sair das suas casas para reparar aquilo que ficou de pé, para limpar os terrenos, para drenar as águas e, no meio dos seus trabalhos, olhar o arco-íris que ficou no céu, lembrando que é possível ver cores bonitas até nos momentos mais desafiantes.

 

3. Como acontece este crescimento nas nossas mentes?

Nos estudos sobre crescimento pós-traumático, compreendeu-se que quando somos confrontados com um acontecimento extremo do ponto de vista emocional, as nossas estruturas tendem a ser abaladas de tal forma que podemos começar a colocar em causa e a questionar aquilo que conhecemos e temos como certo nas nossas vidas até esse momento – as nossas crenças, conceção de vida, fé.

Esta distância entre o que considerámos verdade até ao momento e a realidade com que nos deparamos inesperadamente, pode ser altamente disruptora e conduzir a uma crise pessoal em busca de respostas já que o nosso repertório não basta. Neste momento, de uma forma geral, podem acontecer dois cenários:

  • lidar com a perda está a ser um processo extremamente penoso em que se revela mesmo muito difícil encontrar estratégias que ajudem a lidar com a tristeza profunda. Casos em que nos vemos como que presos numa teia de pensamentos sem fim sobre o que aconteceu e para os quais as respostas não chegam; tampouco alguma paz que traga momentos de alívio e descompressão, acabando, tudo isto, por afetar, com diferentes níveis de severidade, diversas esferas do dia-a-dia.

 

  • lidar com a perda está a ser um processo difícil – possivelmente o mais difícil de toda a vida – mas a pouco e pouco, autonomamente ou com a ajuda de terceiros, conseguimos iniciar um movimento deliberado de busca e compreensão daquilo que aconteceu. A dor existe e é assumida como parte do processo de luto, porém nela é encontrada uma fonte de força que apela à capacidade de sobreviver e prosperar de alguma forma, após o confronto com circunstâncias inesperadas.

Esta busca pessoal para dar sentido à perda, torna-se terreno fértil para a remoção de ideias que talvez já nem nos servissem assim tão bem, e no lugar dessas mesmas ideias, começamos a construir algo novo; começamos a criar algo muito próprio e que, com o tempo, poderá vir preencher as partes das nossas vidas às quais ainda não conseguíamos dar um sentido mais amplo.

 

4. Tipos de mudanças observadas no crescimento pós-traumático

Não obstante de toda a complexidade que envolve a mente (e o coração) Humano, e que povoa os seus lugares mais íntimos e profundos, até ao momento foram identificados quatro grupos de mudanças bastante significativas no contexto do crescimento pós-traumático:

  • Força interior que pode ser redescoberta após o contacto com uma situação limite que exigiu uma capacidade extraordinária de sobrevivência da qual talvez nem tivéssemos noção que existia. Esta descoberta de nós mesmos pode dar-nos a conhecer novas dimensões de nós mesmos e fazer crescer até um sentimento de admiração pela nossa força, autonomia, capacidade de aceitação. Frequentemente relatada também como termo-nos tornado melhores pessoas, mais tolerantes, mais compassivas.

 

  • A relação com os outros também pode ser afetada numa óptica de crescimento, na descoberta de que a dor é altamente transversal e ao comungar desse espaço de perda, é comum crescer dentro de nós um novo nível de compassividade, de bondade, de compreensão do outro de uma forma muito inteira, de aceitar os diferentes caminhos e perspectivas de vida com mais abertura. Esta forma de estar oferece por um lado e invoca pelo outro, o desejo de estar em relações mais profundas e significativas que se alinhem com a trajetória de vida que está a ser redesenhada. Nos processos de crescimento pós-traumático é também frequente ver nascer uma vontade muito grande de doação, de ajudar o outro, de participar socialmente, de contribuir, resultando muitas vezes no ingresso de programas de voluntariado ou criação de grupos de apoio como forma de canalizar o amor e altruísmo que nasceu deste crescimento pessoal.

 

  • Apreciar mais a vida, que por muito contraditório que possa parecer em fases precoces do luto, é um dos possíveis efeitos desta jornada pessoal em que, ao sermos confrontados com a nossa finitude, acontece uma recalibração de valores e prioridades que nos fazem olhar para a vida “com outros olhos” e potencialmente tomar uma direção muito mais alinhada com quem somos.

 

  • Incluir e abraçar novas possibilidades como fazer algo que até então não nos permitimos, desenvolver novos interesses, encontrar um novo objetivo, terminar com situações e acordos que já não eram nutridores. No fundo, abraçar a continuidade da vida e tentar enriquecê-la por nós mesmos e, muitas vezes, pela memória do bebé que partiu.
Viver depois da perda gestacional
5. Fatores que facilitam e promovem o crescimento pós-traumático

O crescimento após perda e/ou trauma não acontece com todas as pessoas, nem tampouco é um fim a atingir. Vai-se desenrolando lento, com a certeza de que a dor da perda não deixa de existir para dar lugar à felicidade na vida dos pais enlutados.

Isto é, para as pessoas que se sentem crescer interiormente com a perda, esse crescimento é revestido de sensações que podem ser muito duais e complementares: “voltei a ser feliz e dava tudo para ser feliz com o bebé que perdi”. Por isso, por mais natural que nos pareça esse visível bem-estar, sabemos que ele é profundo e certamente fruto de um percurso interior muito rico do ponto de vista emocional, do qual resultou algo bonito e reparador.

 

Ainda assim, existem fatores associados ao crescimento após perda:

  • Dar um sentido à perda do bebé ou atribuir-lhe um significado que torne tangível o porquê de acontecimentos tão duros. Este é um processo extremamente individual que não é vivido por todos os pais em luto, mas que pode fazer sentido para pessoas que buscam sinais exteriores de realinhamento por forma a seguirem com o seu caminho de vida.

 

  • Manter os laços com o filho que partiu para honrar a sua existência e reafirmar que ela não passou despercebida. Conversar com o bebé, celebrar o seu aniversário, ter uma gaveta ou uma caixa com as suas roupinhas ou brinquedos, ter fotografias suas, falar sobre a sua vida (mesmo que tenha partido ainda no útero) podem ser formas de recuperar força e alento pelo senso de união neste ou noutros planos (não obstante das crenças religiosas e espirituais de cada família).

 

  • Pensamento deliberado sobre a perda no qual ao invés de sermos assaltados com pensamentos e imagens que nos abalam e angustiam (intrusivos), tomamos um tempo para nos dedicarmos a refletir sobre os acontecimentos e a recordar imagens que ficaram na nossa mente, com um certo controlo sobre a forma como o fazemos e até onde estamos dispostos a ir a cada momento, no ato de gentileza e permissão pessoal.

 

  • Novos caminhos e recomeçar quando surge o apelo para tomar importantes decisões de vida. É frequente que acontecimentos limite nos levem a repensar e reposicionar a importância relativa de muitas partes das nossas vidas. A perda de um filho não é exceção, então essa necessidade de dar um novo rumo à vida pode ser facilitador de um crescimento interior belíssimo e altamente transformador.

 

  • Estratégias práticas para lidar com o luto tais como psicoterapia, grupos de apoio e encontros com outros pais que também perderam os seus filhos, são recursos de extremo valor para que o amparo chegue numa fase tão frágil da vida. Também é de valorizar o apoio da família e amigos que possam estar próximos e acarinhar os pais em luto, lembrando e reforçando a importância que os laços afetivos têm na nossa vida para nos dar alento. Os filhos mais velhos que são tantas vezes a fonte para onde converge o tanto de amor para dar que os seus pais têm, e que já não poderá ser dado ao bebé que partiu. No fundo, tudo o que ofereça conforto, amor e compreensão a estes pais é importantíssimo para edificar o futuro que está por viver, quando o presente se apresenta triste e incerto.
Perda gestacional

Nem todas estas palavras poderão fazer sentido para ti, e se for esse o caso, não há rigorosamente nada de errado contigo, pois esta é apenas uma das possibilidades no universo da perda e do trauma.

O que desejamos é que se foste tocada por algum destes aspetos (perda e/ou trauma) possas ir encontrando alguma paz por forma a que os teus dias vão aos poucos ganhando um pouco mais de cor.

Na The Lovable You temos uma equipa de psicólogas perinatais prontas para conversar contigo se em algum momento te sentires sem esperança ou com uma imensa tristeza que te provocam impedimentos no dia a dia. Estamos e estaremos aqui para ti com muito amor e respeito.

 

Se por outro lado sentes que esta partilha fez sentido para ti e identificas na tua vida algo como um florescer após um longo e inverno existencial, sabe que este lugar de cuidado também é teu e que a psicoterapia pode ajudar a crescer o potencial tão bonito de amor e luz interior após eventos tão significativos da tua vida.

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