
Quando começa a jornada da parentalidade LGBTQIA+?
Para muitas pessoas LGBTQIA+, a jornada da parentalidade não começa na gravidez, na adoção ou no acolhimento. Começa bem antes — no momento em que se reconhece e se afirma o desejo de cuidar. Um desejo legítimo, mas que frequentemente precisa de enfrentar barreiras internas e externas:
“Será que posso ser mãe ou pai?”
“Será que a sociedade reconhecerá a minha família?”
“Serei tratada/o com respeito na sala de parto?”
Este percurso, desafiante para qualquer pessoa, adquire uma complexidade acrescida para quem vive fora das normas cis-heteronormativas. A parentalidade LGBTQIA+ desenvolve-se muitas vezes à margem dos modelos dominantes de família — e isso tem implicações emocionais, legais e sociais profundas.
Aceitar o desejo de cuidar: um primeiro ato de coragem
Para muitas pessoas LGBTQIA+, o primeiro obstáculo é interno: aceitar o próprio desejo de ser mãe, pai ou cuidador. Este desejo pode vir acompanhado de memórias de rejeição familiar, exclusão social ou da ausência de modelos familiares semelhantes. Em vez de entusiasmo, pode surgir o medo — de não ser reconhecido, respeitado ou até de colocar a criança em risco de discriminação.
Barreiras institucionais e exclusão nos sistemas de saúde
As dificuldades não terminam com a decisão de avançar. Muitas pessoas enfrentam obstáculos legais e institucionais no acesso à parentalidade:
- Acesso desigual a técnicas de reprodução medicamente assistida
- Restrições legais ao reconhecimento parental
- Formulários que não reconhecem duas mães, dois pais, ou um pai que amamenta
- Processos de adoção marcados por preconceito
- Ausência de protocolos inclusivos nos serviços de saúde sexual e reprodutiva
Mesmo quando o desejo se concretiza, o percurso perinatal pode ser permeado por invisibilidade, microagressões e, por vezes, violência simbólica ou explícita.
Saúde mental perinatal: dados que não podemos ignorar
A ciência confirma o que tantas pessoas já sentem na pele. Um estudo de 2024, publicado no Lancet Regional Health – Americas, revelou que mulheres lésbicas, bissexuais e queer grávidas apresentam entre 1,5 a 2 vezes mais sintomas de depressão e ansiedade perinatal do que mulheres heterossexuais (Sevelius et al., 2024). Os dados apontam para:
- Maior sensação de isolamento
- Autocrítica intensa
- Reduzido sentimento de pertença nos serviços de saúde
Para pessoas trans e não-binárias, os desafios são ainda mais marcantes. Um estudo publicado no JAMA Psychiatry (2023) identificou níveis significativamente mais elevados de depressão perinatal, especialmente quando há desrespeito pela identidade de género em contextos clínicos. O problema, nestes casos, não é o cuidado médico em si, mas a negação simbólica da identidade num momento de extrema vulnerabilidade.
A raiz do problema: discriminação estrutural e invisibilidade
Estas vulnerabilidades não são individuais. São produzidas por estruturas sociais e institucionais que continuam a centrar-se numa ideia normativa de família e de parentalidade. Na prática, isso manifesta-se em:
- Obstáculos legais e sociais no acesso à parentalidade (por via biológica, adoção ou coadoção);
- Formulários e práticas clínicas que não contemplam realidades familiares diversas;
- Comentários e micro agressões que reforçam o sentimento de não-pertença;
- Pressão para ocultar ou justificar a identidade sexual ou de género durante consultas ou internamentos;
- Carência de investigação sobre experiências LGBTQIA+ na parentalidade e perinatalidade
Estas condições geram ambientes de hipervigilância, stress e isolamento — exatamente quando se deveria promover contenção emocional, afeto e segurança.
Parentalidade LGBTQIA+: um ato de resistência e de amor
Neste mês do orgulho, é urgente reafirmar: apoiar a parentalidade LGBTQIA+ é um ato de justiça social e de promoção da saúde pública.
É preciso transformar os espaços de saúde e os discursos sociais em lugares seguros, informados e respeitadores. Criar pertença onde houve exclusão. Abrir escuta onde antes houve silêncio.
Porque a parentalidade LGBTQIA+ não é menos válida, menos natural ou menos legítima. É apenas mais frequentemente atravessada por obstáculos que não deviam existir — e que, quando existem, produzem sofrimento evitável.
Se estás neste caminho — como mãe, pai, pessoa não-binária ou com outra vivência — queremos que saibas:
Não estás só. A tua experiência importa. A tua saúde mental merece cuidado.
E esta comunidade está aqui para caminhar contigo.
Notas:
Harvard Health — Sexual minority women face higher risk of stress, depression during pregnancy
Sevelius et al. (2024), Lancet Regional Health – Americas
JAMA Psychiatry (2023) — Mental health disparities in perinatal trans and nonbinary populations
Fotografia: https://www.instagram.com/stokeskennedy/