Comunidades de mães online

Há quem diga que os papéis entre pais e filhos se inverteram e que as crianças se tornaram pequenos reis. Por outro lado, há também quem diga que hoje em dia os pais são mais conscientes e altamente comprometidos em dar o melhor de si aos nossos filhos. As vozes dividem-se, e no meio delas, estão as mães e os pais de hoje a abrir um novo caminho na sua forma de educar, quebrando tabus, reconhecendo a individualidade e gostos dos seus filhos, procurando fazer escolhas mais refletidas e ponderadas. 

O exercício da parentalidade está a sofrer grandes transformações e é inegável que muito daquilo que inspira e empodera as mães e pais de hoje, é encontrado nas redes sociais, em comunidades de mães online, às quais um número crescente – sobretudo de mulheres –  recorre para aprender, partilhar, criar laços de amizade e pertença. A par dos benefícios desta janela que se abriu no mundo virtual, nota-se que estas comunidades de mães online também podem ser indutoras de stress e ansiedade e que a distância física tem sido também o escudo perfeito para o fenómeno de mom shaming, por conta das escolhas, ações, desabafos feitos nas plataformas, com desafios tremendos do ponto de vista do bem-estar e saúde mental.

A geração que está a romper com o passado

Abrir novos caminhos pode ser extremamente gratificante (e necessário), porém romper com modelos de maternidade mais enraizados na nossa estrutura social, pode trazer atrito, conflito, em casos mais complicados, algum nível de ruptura até.

O exercício da parentalidade está em profunda transição, assim como a forma como a própria criança é vista no mundo. Basta recordar quão recente é a Declaração dos Direitos da Criança (proclamada em 1959 pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas) para nos situarmos e ganharmos alguma perspetiva sobre o terreno que pisamos atualmente, e que tanto confronto geracional tem despoletado, o qual testemunhamos com frequência em consulta, como fonte de stress para mães e pais que estão a procurar percorrer o seu próprio caminho, de acordo com aquilo que pensam e sentem ser o melhor para os seus filhos.

Crise de modelos

Se antes os modelos mais próximos eram encontrados no seio familiar com avós, tias e vizinhas que se ajudavam mutuamente, e que deste modo ensinavam “como se faz” isto de criar os filhos, atualmente deparamo-nos com um vazio de modelos que varia desde as tarefas mais essenciais do cuidar, até à existência de alguém que nos apoie e inspire no “aprender a ser mãe”. Contribui para este fenómeno, a configuração familiar ocidental tão marcada pelo afastamento físico entre as famílias e pela diminuição do número de bebés nas mesmas.

Adicionalmente, seja por oposição à educação que recebemos, seja pelo acesso à informação de que dispomos atualmente, ou pela própria evolução do estilo de vida, é notória a ruptura com modelos educativos antigos.

Simultaneamente cresce a necessidade de encontrar um grupo de pertença; alguém que valide os nossos desejos, alguém com quem possamos aprender, desabafar, criar laços. No fundo, alguém que também esteja a transgredir as linhas imaginárias que limitaram a forma de fazer e de pensar neste grande mundo que é o maternar.

Aprender a ser mãe, online

Frequentemente – ou quase sempre? – sozinhas em casa com os nossos bebés, procurando ser e fazer melhor a cada dia, temos por companhia a informação que cresce a cada dia online. Um novo mundo que se abre à distância de um clique; profissionais das mais diversas áreas escrevem sobre sono, alimentação, apego na primeira infância, vestuário e calçado respeitadores, brincadeira livre, resposta neurocompatível… Uma amplitude de oferta na área educativa, nunca antes vista, dedicada a mães e pais.

Desreguladora por um lado, expansiva por outro, a internet no geral e as redes sociais em particular, surgem como o lugar onde milhares de mulheres se encontram diariamente para, de uma forma ou de outra, aprenderem a ser mãe, abrindo horizontes por via da acessibilidade a profissionais e pela partilha de e com outras mães.

Faz sentido para ti?

Comunidades de mães online

É neste contexto que as comunidades de mães online têm assumido um papel crescente, quer em dimensão, quer em importância, na vida de tantas mulheres que encontram conforto nestes grupos (e dissabores também, mas iremos a esse tema mais adiante) onde se reúnem em torno de interesses comuns.
Dentro deste tema, é incontornável o marco histórico vivido no ano 2020, aquando da pandemia Covid-19 em que de repente “o mundo ficou em casa” e a forma de as pessoas se conectarem entre si foi, durante largos meses, por via da tecnologia.

Especialmente para as famílias que por esta altura estavam a receber os seus bebés, deu-se um corte sem aviso prévio na forma como tudo iria acontecer daí em diante. A maternidade, que já era relativamente solitária na nossa sociedade, passou a ser vivida de uma forma muito literal dentro de quatro paredes e com desafios impossíveis de imaginar. Há tanto a conversar e a investigar sobre o impacto destes anos na saúde mental das famílias, mas vamos, por agora, focar-nos no papel que as comunidades de mães online tiveram e têm especialmente desde então.

Identificamos aqui alguns dos aspetos que tornam estas comunidades tão importantes:

  • apoio e validação do grupo sobre as dificuldades vividas pelas mães;
  • aprendizagem de novas teorias e competências;
  • acesso a informação dedicada à maternidade que pode facilitar a despistagem de indícios importantes, por exemplo ao nível de saúde, de forma anónima e autónoma;
  • espaço de “escuta” e de dar voz a inquietações e percepções sobre a maternidade;
  • ponto de encontro com pessoas com interesses em comum, de muito fácil acesso;
  • facilidade de pesquisa e acesso a profissionais de saúde alinhados com os desejos da família;
  • rede de mães onde “há sempre alguém online” para ajudar a qualquer hora;
  • criação de laços importantes que muitas vezes acabam por evoluir para além do online;

Passados os primeiros anos pós-pandemia, a vida retomou o seu ritmo normal, lato sensu, mas houve pontes que não se quebraram e o espaço virtual como ponto de encontro foi uma delas. Estes são espaços onde “toda a gente está” e onde todos já aprendemos alguma coisa. Apesar disso, é evidente um certo pudor em assumir a importância que o digital assumiu e assume nas nossas vidas, tendo inclusivamente conteúdo perfeitamente passível de ser trazido para áreas de cuidado da saúde mental.

O online também é real e podes trazê-lo para consulta

Para redigir este artigo, foi feita uma pesquisa por literatura científica que nos demonstrasse os efeitos das comunidades online a nível de saúde mental e bem-estar e geral no contexto da maternidade. Talvez por ser um fenómeno relativamente recente – e sejamos transparentes – desvalorizado apesar do seu peso nas nossas vidas práticas (basta pensar no tempo diário que o digital ocupa nos nossos dias), não encontrámos artigos relevantes em fontes credíveis sobre este tema e isto leva-nos a pensar nas falas que tantas vezes escutamos de que a vida online é uma montra e não tem nada de real.

Há um certo desdém para com uma atividade tão comum e diária para a maior parte das pessoas, como se tudo o que encontrássemos ou escrevêssemos online fosse sempre leviano, desinteressante ou falso.

Segundo o estudo levado a cabo anualmente pela Marktest desde 2011, cada Português passa em média 97 minutos diários nas redes sociais (1h e 37m por dia; mais de 40 horas por mês). Imagina como este tempo médio aumentará em períodos de baixa e licença parental.

O lado B das comunidades de mães online: a pressão, a comparação, a vergonha e o mom shaming

A tecnologia tem-nos permitido e oferecido muito. Apesar de ser uma longa dissertação esta questão de se estar em rede nos aproxima de quem está longe e/ou nos afasta de quem está perto. É um paradoxo real. Porém, não menos real é a existência de um labo B nestas comunidades online e que pode ter um impacto tremendo na saúde mental das pessoas, principalmente quando falamos de uma fase de extrema sensibilidade e susceptibilidade, como o período perinatal.

Por muito preparada e suportada que uma mulher chegue à maternidade, é natural que à medida que dias que se fundem com as noites e a matrescência se apresenta em todas as suas faces, que as inseguranças, as dúvidas, os medos surjam como resposta ao novo território que esta família está a adentrar.

Porém, pensemos no que significa para uma mulher, a atravessar esta fase tão frágil da sua vida, deparar-se diariamente com escritos e partilhas que são por ela entendidos como o lugar a atingir; sendo esse lugar um significador de desempenho do seu papel como mãe e cuidadora, ou no mínimo, como algo que tem de fazer porque assim é que fazem as “boas mães”. Quanta pressão para uma só pessoa.

Pode ser violento. E injusto, até.

Há tantas formas de ser mãe, como quantas mães há no mundo e a comparação é um veneno real com potencial para contaminar silenciosa e continuamente cada pequeno gesto de ternura e de conexão que a mãe oferece ao seu bebé através do cuidar, do mimar, do limpar, do nutrir, do embalar.

Para além da comparação com outras mães, há vários outros sentimentos que podem aflorar e comprometer seriamente o bem-estar e saúde mental da mulher, tais como:

    • Stress e ansiedade;
    • Pensamentos de falha e de não conseguir fazer as coisas bem;
    • Pensamentos como não ser boa mãe como “as outras”;
    • Ideias de estar a falhar aos filhos e a fazer tudo errado por eles e com eles;

Continuando a aprofundar este lado perverso do mundo online – já que até então contemplámos cenários do universo interior da mulher em que ela própria retira conclusões do conteúdo que assiste – abordamos agora conceitos relativamente recentes na sua forma (e extraordinariamente violentos) como o mom shaming.

O mom shaming surge como um discurso moral na maternidade, proveniente de diversas fontes e que permeia várias esferas do papel desempenhado especificamente pela mãe (o pai geralmente não é retratado nem atacado no desempenho do seu papel). Este discurso moral parece ser aplicável a toda e qualquer mãe, independentemente das suas características, da sua forma de maternar, ignorando também as características de seus filhos ou o ambiente sociocultural onde estão inseridos.

Imagine-se o que significa para uma mulher, recém-mãe ou mãe há pouco tempo, que, por conta de um breve comentário online ou uma fotografia postada, se torna alvo de comentários ameaçadores ou degradantes, ou até mesmo, vítima de um ataque grupal em que se vê exposta e julgada em termos nos quais parece já não haver limites.

A mais pequena interação online pode evoluir para discussões e vexame público, de tal gravidade que podem comprometer a sua segurança e a saúde. O insulto dirigido a mulheres no período perinatal preocupa-nos seriamente porque sabemos o impacto real que pode ter na sua saúde mental e na noção de competência prática/afetiva dessa mulher, como pessoa e como mãe.

O cuidado materno precisa de ser apoiado e celebrado. Não julgado.

O romantismo materno é uma fachada?

Quando entramos online, apesar de tendencialmente nos cruzarmos com cenários mais próximos do perfeito do que do banal quotidiano, será isto tão diferente de abrirmos um álbum de família para ver os nossos registos mais bonitos e saudosos?

Será isto tão diferente das conversas diárias que temos com colegas ou amigos, nas quais mais rapidamente optamos por falar de temas leves ou triviais, do que de questões que nos ocupam a mente e tiram o sono?

Seria, então, esperado que as redes onde partilhamos uma tão ínfima parte das nossas vidas, fossem o local certo para deixarmos aquilo que mais nos inquieta e preocupa, como se só isso fosse real?

A beleza e o idílico não são também verdadeiros?

Não são os momentos divertidos em família a parte que fundamentalmente mais queremos recordar, e também partilhar, por tudo aquilo que representam de bom para nós?

A vida é falsa quando é bonita?

Tantas perguntas em aberto… e nisto que tanto nos oferece para reflexão, gostaríamos de deixar uma mensagem fundamental de que o que acontece online é real, pode ser caloroso e desconcertante para a experiência humana, e não há nada de errado em trazeres temas com os quais te cruzas online, para o contexto de uma consulta de psicologia. Aquilo que te movimenta e impacta é importante para nós. Aquilo que te abre portas de reflexão e levanta questões, tem claramente potencial para ser explorado. A tua vida é importante em todos os campos de expressão e gostaríamos que pudesses descansar na certeza de que és bem vinda a este espaço, sem o medo de seres julgada pelas tuas escolhas.

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